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“A comida perdeu valor, só se pensarmos no preço, porque o valor é o trabalho dos agricultores, a manutenção dos ambientes rurais, é o património agroalimentar de um país”

Carlo Petrini, fundador do Slow Food

Diário de Notícias, 14/05/2017
por Ana Bela Ferreira

Carlo Petrini, criador do movimento slow food escreveu o prefácio da encíclica do Papa Francisco e defende a escolha de produtos locais e que se pague o preço justo aos agricultores.

Começou o movimento de slow food contra o McDonald”s em Roma. Foi o clique ou já seguia o slow food?

Venho de um território que tem uma grande tradição gastronómica, no norte de Itália, depois o desenvolvimento do movimento teve diversas etapas. Partiu da sensibilidade em relação às questões gastronómicas e depois desenvolveu-se para a sustentabilidade ambiental e sobre a atenção para a economia rural.

Nos anos 1980 foi difícil fazer com que as pessoas percebessem a ideia da comida mais sustentável, serem contra a fast food?

Há dois dias, para minha grande surpresa, o presidente Obama esteve em Milão a falar de comida. Uma coisa inimaginável, que um líder político nos anos 1980, pudesse dedicar uma conferência a falar sobre comida e isso para mim é a prova de um percurso válido. Porque nós começámos a falar de comida já com estas características em relação ao ambiente e à defesa da biodiversidade, nos anos 1980. É uma satisfação que a política fale de comida não apenas pelo aspeto lúdico, mas também pelos aspetos ambientais e produtivos.

Nos anos 1980 não se cozinhava em casa. Já fizemos o percurso inverso?

Nestes anos mudou muito a sensibilidade e continuará a mudar porque existe uma situação preocupantes também do ponto de vista da saúde. Neste momento, existe um aumento exponencial de alergias, de doenças causados pelos produtos químicos usados para transformar a comida. Nos últimos dois anos, a Europa proibiu 900 produtos químicos que eram utilizados na produção alimentar, existem 4000, e nos últimos dois anos proibiram 900. Em Itália, temos um milhão de celíacos. Quando era jovem não havia um milhão de celíacos. Mas isto porque mudou o próprio tipo de produção, de cereais. Então esta sensibilidade gera uma maior atenção. A especificidade de slow food é de fazer mudanças, mas mantendo a qualidade alimentar e o prazer da convivência.

Mas também existe a questão económica. Porque a comida biológica é mais cara.

Quando comecei a trabalhar, nos anos 1980, 32% do meu rendimento era gasto em comida. Hoje a comida custa 12% do rendimento e os telemóveis estão a chegar aos 10%. Devemos pagar o justo, slow food não é para uma comida cara é para pagar o justo aos agricultores. Na Europa, e também aqui em Portugal, os agricultores não são bem pagos. Os agricultores recebem pouco, os cidadãos pagam e no meio há quem receba a fatia maior. Este é o sistema mundial, mas especialmente europeu. Este tipo de divisão da produtividade não nos agrada. Em Itália, paga-se o preço dos cereais como se pagava há 30 anos. Desafio qualquer um a viver com o rendimento de há 30 anos. A comida perdeu valor, só se pensarmos no preço, porque o valor é o trabalho dos agricultores, a manutenção dos ambientes rurais, é o património agroalimentar de um país. Os queijos de Portugal são uma das pérolas de toda a Europa, e estes queijos não nasceram ontem. Não quero acabar os meus dias a comer filadélfia, quero comer queijo de Évora. Pelo amor dos céus (risos).

Como se come segundo o slow food?

Não podemos dar regras. Mas escolher produtos locais, especialmente se frescos é a coisa certa. Porque muitas vezes escolhemos produtos frescos que atravessam outros continentes. A sazonalidade é uma boa orientação. Se quero comer produtos frescos que chegam de outros continentes, eles tiveram de ser tratados com conservantes. Isto é válido para todos os países. Não é que diga que o vinho do Porto é só para os portugueses, não, que o importem também para Itália e para outros países. Mas não é justo que me chegue tomate do Alentejo porque tenho em Itália tomate fresco. E isso vale também para os portugueses.

O movimento já ganhou a luta?

Temos a satisfação de ver uma nova geração sensível e vivemos um momento particularmente feliz para a comida, ainda que um pouco exagerado. Hoje em qualquer país, a qualquer hora do dia, ligamos a televisão e há alguém com uma panela que fala. Depois fazem estes espetáculos obscenos, como o Masterchef, é preciso ser mais tranquilo. Se se exagera sobre este tema, isso não é cultura alimentar, é pornografia alimentar. A cultura alimentar deve ter três coisas ao mesmo tempo: qualidade, esta não pode destruir o meio ambiente, e deve pagar-se o justo aos agricultores.

Fez o prefácio da encíclica do Papa. Foi o palco ideal para o slow food?

Sou agnóstico, mas tive a sorte de entrar em contacto com este homem que me telefonou, que me falou da sua origem – sou da mesma região (Piemonte) de onde nasceram o seu pai e avós -, pensava tudo, na minha idade, menos que me telefonasse um Papa. E menos ainda de fazer um prefácio a uma encíclica. Mas, devo dizer que este documento – a Laudato Si (Louvado Sejas) – é um dos maiores do século XXI, de inspiração política e, sem dúvida, ecológica. É verdadeiramente um bem precioso. O que me entristece é que o leiam pouco, mesmo entre os católicos. O que me parece é que todos admiram o cantor e ninguém conhece a canção. Também a política devia ler mais este documento e a economia. Porque fala de uma economia e de uma ecologia integral, que é uma coisa diferente da economia atual.

Falou destas questões com o Papa?

Uma parte importante do telefonema foi dedicado à economia da subsistência. A agricultura tem dez mil anos de história e a economia da agricultura sempre foi a da subsistência, também aqui em Portugal. Uma economia pobre, mas que garantia a vida, mesmo em momentos difíceis. Com o aparecimento da revolução industrial, desenvolve-se a economia capitalista, que tem como princípio acumular dinheiro e depois reinvestir, ter aplicado este princípio económico à agricultura foi um desastre.